Embora quase, se não totalmente
inexistente nos escritos de Chiquitunga o sacramento da reconciliação, a vida
de Chiquitunga é uma vida oferente em misericórdia e de misericórdia. Quem nos
dá a chave para entender, abrir e entrar pela porta desta vida oferente em
misericórdia é o Pe. César Alonso Las Heras. Ele quis escrever uma biografia de
Chiquitunga intitulada: “A NOIVA ETERNA QUE MORREU DE AMOR”, mas partiu antes
de escrevê-la. Mas, pode ser que já tenha surgido a interrogação: “O que tem
este título haver com a misericórdia? A seguir veremos que tem tudo haver. A
vida de Chiquitunga foi uma entrega em amor “nupcial”, como diz Frei Júlio
Félix Barco, carmelita. "Ela se enamora de Jesus desde criança, e na juventude,
aos 16 anos quando se dá conta do dinamismo de sua feminilidade, orienta-a
totalmente para Jesus e faz de seu ser “uma oferenda ao ‘Amado’”, e sintetiza
tudo isto no seu lema com que se tornou conhecida: “Tudo te oferto, Senhor!”
Misericórdia é uma palavra que vem do
latim e significa “dar o coração aos miseráveis”. A vida de Chiquitunga é uma
entrega em amor “nupcial”, uma entrega Àquele que é o Rosto da Misericórdia do
Pai, Jesus Cristo. Chiquitunga faz de toda sua vida, de todo seu ser de mulher
o movimento que está inerente na misericórdia: “dá o seu coração a Jesus e nele
aos irmãos”; e, no coração, símbolo da entrega no amor: oferece, entrega, doa
tudo; cada pulsar, cada respirar, todas suas forças até o esgotamento de tudo,
como ela mesma nos diz: “Todo meu afã está em trabalhar até cair rendida, (como em algumas noites), até esgotar as forças pela Glória de Deus e a salvação das almas!"
Chiquitunga vive sua entrega oferente em misericórdia “nos mais diferentes aspectos de sua vida familiar, social,
laboral, apostólica, mística; na sua casa, na Normal de Magistério, no trabalho
da escola, no apostolado com as crianças, os jovens, os encarcerados, os
enfermos e idosos...; recolhida junto ao Sacrário, na oração noturna de
intimidade com o Senhor. Em toda parte vivia seu lema que resume a resposta do
crente ao Deus Amor que nos deu tudo em seu Filho: ‘Tudo te oferto, Senhor!’,
como ‘um sacrifício vivo, santo, agradável a Deus’”(Fr. Júlio). Podemos ver
como Chiquitunga viveu todas as catorze obras de misericórdia, as corporais e
espirituais; cuidou das pessoas em sua integridade e totalidade: deu de comer
aos famintos, deu de beber aos que tinham sede, vestiu os nus, acolheu os
estrangeiros, visitou os enfermos e encarcerados, sepultou os mortos (obras
corporais), aconselhou os duvidosos, ensinou os ignorantes, admoestou os
pecadores, consolou os aflitos, perdoou as ofensas, suportou com paciência as
injustiças e rezou a Deus pelos vivos e pelos mortos (obras espirituais).
Exemplo disso é o que nos conta a seguir: “Que a pouca sede que possamos sentir às vezes, sirva para saciar a sede deles, que a pouca fome que possamos sentir, nos faça lembrar deles e elevar as nossas orações e sacrifícios por estes irmãos... Maria Imaculada proteja-os, vele por eles e a cada um de nós faça cada vez mais, fiéis seguidores do seu Filho”.
Quem não se comove diante da leitura no
livro do episódio de sua infância só conhecido na vida dos santos? “Certa vez -no-lo conta a mãe- o senhor
Ramão presenteou a Maria Felícia e a sua irmãzinha caçula (“Manhica”) dois
“abrigozinhos” muito lindos, que estrearam num dia de muito frio. Maria Felícia
voltou do Colégio tremendo de frio. O que aconteceu? Naquele dia encontrou-se
com outra menina que tremia de frio e sem pensar duas vezes, Maria Felícia
despojou-se da capa e cobriu com ela sua vizinha acidental... Sua irmãzinha,
escandalizada pelo acontecido, acusou-a ante seus pais... Porém as inquisições
e ameaças ... nada obtiveram dela. “Mas paizinho, não vês que não tenho
frio!”-repetia passando as mãozinhas pelo seu braço desnudo e tiritante-. “Não
sinto frio!”(Fr. Júlio).
Em Chiquitunga a misericórdia tem uma
fonte de onde ela brota: a Eucaristia, e, não existe Eucaristia sem
reconciliação. De sua Primeira Eucaristia que ela denominou: “A primeira união
com meu Deus”, nasce seu desejo de ter um coração reconciliado; sinal e símbolo
disso é o guarda-pó branco com que continuamente reveste seu corpo de mulher,
comovida com a parábola que sua catequista lhes contou. “O guarda-pó branco era símbolo da pureza na qual queria manter seu
coração para Jesus. E, além disso, para ser acolhida mais natural e facilmente
entre seus queridos pobres, velhinhos e doentes. Vestida de acordo com seu
sobrenome Guggiari e, como sobrinha de um presidente da República, teria
produzido um distanciamento de seus amigos, os pobres” (Fr. Júlio).
Ela mesma é quem nos relata isto: “Nunca se apagará da minha mente a
lembrança do dia mais feliz de minha vida, o dia da primeira união com meu Deus
e o ponto de onde parte minha resolução de ser cada dia melhor”. É o
seu ponto de partida conscientemente para a santidade.
Relato claro de sua mansidão e
misericórdia é o que nos deixam seus irmãos: “Sendo Maria Felícia a mais velha, poder-se-ia esperar dela dentro da
família, atitudes de certa superioridade para ser obedecida pelos outros cinco
irmãozinhos. Mas, isto não; bastava-lhe a doçura. ‘Nunca recebemos dela, por
nossas travessuras, mais que um olhar de reprovação ou um doce sorriso, ou uma
palavra tão suave que mais nos animava a mortificá-la, para ver se perdia o
controle..., mas nunca obtínhamos nosso resultado’”.
Sua adesão entusiasta à Ação Católica,
e nela sua consagração ao apostolado, consagração radical em virgindade: em
alma e corpo, por que estava certa de sua vocação de entrega integral a Jesus e com uma intenção bem concreta: pelos
sacerdotes. Ser uma “pequenina Hóstia de Amor e reparação, por eles; porque é
necessário que todos sejam santos”. Esta jovem sente e vê em toda sua
pureza como Santa Teresinha que os sacerdotes que deveriam ser como anjos, são
frágeis criaturas e necessitam da misericórdia oferente de sua frágil vida
entregue a Deus no silêncio e abdicação de todos os seus sonhos e desejos. Ela
o consumará mais tarde quanto transpassar a porta da clausura do Carmelo.
O
Ideal que a atraia era Jesus Cristo, o Jesus dos Evangelhos, a quem ela
encontrava na intimidade da oração e no Sacrário. O centro de toda sua vida era
a Eucaristia diária. E junto com Jesus, a Santíssima Virgem em seu coração e em
suas práticas piedosas: diariamente rezava os quinze mistérios do Rosário.
Chiquitunga
vivia e agia como enamorada em todos os aspectos de sua vida.
No
apostolado da Ação Católica, colaborando em “todos os ramos..., porque seu
ardor traspassava toda fronteira precisa; entregue “às meninas e adolescentes,”
“as pequenas”: era comum vê-la saltar e cantar com elas com uma alegria de
viver tão admirável como contagiosa; às jovens da Associação de Senhoritas da
Ação Católica”, na Escola Normal, pois ali tinha se estabelecido um centro; aos
marginalizados, seus preferidos desde quando menina e que o seguiriam sendo
sempre.
Em
seu idealismo juvenil, chegou a Venerável a sonhar já nesse tempo com as
missões entre infiéis. Na
família, Chiquitunga vivia feliz, fazedora de paz e conselheira; semeadora de
alegria; esquecida de si para dar gosto aos outros. “O ambiente em casa era
bonito; uma família bem constituída, unida; ela era o nexo para isso. Todos
ponderavam como era acolhedora a família; mas na realidade quem fazia que fosse
acolhedor seu lar era Chiquitunga” (Fr. Júlio).
Sua misericórdia é sem limites e não
conhece fronteiras, nem de credo, classes sociais, ideologias, políticas. Para
ela todos são irmãos que devem ser amados, servidos, orientados, acolhidos,
iluminados. Para os adversários
políticos, que inclusive lhe impediam o acesso aos estudos do Magistério,
Chiquitunga não tinha outra coisa senão perdão; e, para inculcá-lo aos demais,
compôs uma canção de pensamento político cristão. “Perdão” e “reconciliação”
era o lema:
“Estendei
a mão ao vosso adversário,
Vosso
adversário tradicional...”(Fr. Júlio).
Seu heroísmo misericordioso chega ao
extremo quando sonha com um amor, não para tê-lo para si, mas para renunciá-lo.
É célebre a frase que nos deixou sintetizando seu heroísmo misericordioso: “Que bonito seria ter um amor, renunciar
a esse amor e juntos imolar-nos ao Senhor pelo Ideal”. Mas quando seu
sonho se tornou real, Chiquitunga conheceu o martírio do coração, entra numa
terrível noite do espírito, da alma, do corpo e do coração, e está sozinha no
rol dos santos com um martírio semelhante, o martírio do coração e
consequentemente de todo seu ser, que a levará paulatinamente a entregar tudo
numa vida de oferta total de si mesma por todas as pessoas. Este oferta de tudo
é o Carmelo. E ora assim a nossa Mãe Maria: “Dai-me,
dai-me ó Maria, a graça de que veja e possa, o mais cedo possível, cortando com
o que me amarra, romper e ir até Cristo, e abraçar-me só a Ele e Nele viver por
meu amado irmão, dia a dia consumindo-me!”.
Enquanto isto ela continua sua ação
misericordiosa entre os seus amados: “Além
do apostolado organizado na Ação Católica, ao qual Chiquitunga continuou
dedicada apaixonada e fielmente, a nível paroquial, diocesano e nacional
desgastando-se pelos diferentes setores: meninas, senhoritas, estudantes,
jocistas, etc., Maria Felícia tinha o coração aberto ao apostolado pessoal de
todos os necessitados material ou espiritualmente: idosos, enfermos, afastados,
encarcerados.
Anos intensos, repletos de gestos
heróicos e de episódios simpáticos, de conquistas apostólicas e de luta
interior. Entre os muitos atos que se poderiam recordar, destacamos um, que
testemunha a força apostólica de Chiquitunga e que expressa a amplitude e
variedade de sua ação pastoral. Referimo-nos à transformação espiritual ou
conversão do poeta anarquista Marcelino Valiente, encarcerado por suas ideias. Ele mesmo relatava como Chiquitunga foi à prisão para
visitá-lo e como ele começou a mudar interiormente diante de suas palavras. No
poema “Memento” conta agradecido as visitas que a ele, pobre e doente, jazendo
em um mísero tugúrio, fazia-lhe a Venerável, levando consolo, esperança e fé. A
mudança definitiva se operou quando uma noite vagava ele como um desesperado e se encontrou com Chiquitunga na rua. Essa noite
Chiquitunga lhe explicou o que é ser cristão, e isso – disse – deu luz à minha
fé, firmou minha fé definitivamente. Essa noite Chiquitunga foi:
“
a ponte sagrada e bendita
que
utilizou o Pai, Amor infinito,
para
dar-me graça, saúde, fé e amor”
Marcelino
Valiente canta sua bravura evangelizadora e a sintetiza assim:
“Chiquitunga!,
seu nome de batalha,
terrível,
ainda que de diminuta talha;
estudantes
e operários admiraram-na...
e
os pobres, os presos, os enfermos
tiveram-na
também por esses ermos(Fr. Júlio).
E por fim seu amor decide-se pelo
sacerdócio: “de manhãzinha, diante de um
grupinho de amigos da Ação Católica, Chiquitunga e Sauá davam-se um duplo e
forte abraço de despedida, até a eternidade! Arrancou o velho trem. Era a
consumação do sacrifício. Não voltariam a ver-se neste mundo” (Fr. Júlio).
Ela segue sedenta de consumar sua
entrega em misericórdia: “Tenho sede
de seu amor! Uma ânsia estranha de entrega total, de imolação silenciosa e
escondida; sofro, por não poder dar-lhe a entender este meu desterro! Cada dia
parece-me mais verdadeira minha vocação, e a amo como só Deus pode saber!”.
Ela se sentirá ligada mais fortemente
que antes aos sacerdotes, por eles entregará sua vida ao Senhor! Escrevia
então: “Dias semelhantes pelos quais
estou passando, somente saberão valorizá-los aqueles que tenham passado estes
instantes inigualáveis de felicidade, por aquilo de que o ‘primeiro passo’ é o
começo ‘do fim’. Mas, ficavam
muitas interrogantes, seguir-se-iam meses de solidão e insegurança, mas um
encontro previsto pela misericórdia de nosso Bom Deus, com a Priora do Mosteiro
das Carmelitas Descalças recém fundado em Assunção, devolveu a paz e o conforto
que ela necessitava. E ela sintetiza toda esta paz numa frase da carmelita que
se gravou profundamente em seu coração: “Somente
devo preocupar-me de que meu amor se centre de novo todo nele, em Jesus”.
E assim se fez, o movimento da
misericórdia triunfou em Chiquitunga. Vemo-la entrar pouco tempo depois no
Carmelo e consumar em quatro anos sua entrega em amor nupcial ao Amado de seu
coração. Oferente, a espera do Amado, “noiva eterna”, suas núpcias não serão
prelibadas na terra, serão consumadas no Céu com o Esposo Divino para quem se
preparou servindo na terra em amor oferente, dando na terra seu coração aos
“mais pobres, humildes e perdidos” (Tagore).
O seu sorriso e as palavras com que
entrou na câmara nupcial são eco do abraço eterno destas núpcias eternas
eternamente celebradas no júbilo sem fim da eternidade: “Jesus, te amo! Que doce
encontro! Virgem Maria!”